sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

nº 629


Caminhava na manhã de sábado, a saborear o vento e acariciar os ouvidos com os poucos carros que pelo asfalto quente passavam. Era tudo muito bonito, com suas imperfeições desejadas por mim. De perto eu vi uma praça e sua estátua que cheiravam urina. De longe eu via pessoas conversando, pareciam muito conhecidas, ajudando-se em alguma situação de desespero. Tornei a divagar pela calçada. Olhava cada casa em seus detalhes, percorria suas janelas como se fosse carne humana, nada exaltou minha singular mania de observadora. Quase desisti. Queria voltar. Tentei mais uma vez, de londe avistei um painel de propaganda, era uma casa de esquina, vizinha de um posto de gasolina. Parei. Fixei meus olhos naquela porta. Discorri meus olhos sobre o cimento disforme que vestia a casa. Algumas pessoas que por ali andavam, pareciam estar se perguntando o que eu estava fazendo, ali parada, a admirar aquela arquitetura abandonada. Eu estava absolutamente estupefata, entorpecida por aquelas janelas gastas e seus vidros quebrados, e os que restavam inteiros, refletiam as grandes casas do outro lado da rua, os fios e as nuvens em seus diferentes formatos. Embriagada eu estava por aquelas cortinas rasgadas, eram como pele cortada ao acaso, elas não cicatrizaram, dançando ao soprar do vento. Meu corpo mantinha-se estático, minha mente flutuava, conduzindo-me para mais perto. Cheirei todas as partes da casa, enfiei a cabeça por entre os vidros partidos, e vi com os olhos que aqui me auxiliam na escrita: À esquerda um armarinho, ao lado um rosário de madeira escuro, à minha frente um lavabo só, à direita duas grandes mesas, e longe do alcance de minhas mãos, muito longe encostando-se na parede, uma estante de livros. Tudo empoeirado. Queria entrar ali, escrever por sobre o pó, desenhar nas paredes, roubar aqueles livros. De quem é esse lugar? Indaguei curiosa ao meu próprio eu. Não sabia se havia alguém ou não. Eu estava certa de que ali havia uma história. Aquilo que meus sentidos estavam experimentando, eram fragmentos de uma ou tantas vidas e que pelo menos por aquele instante invadiam a minha, sobrepondo o percurso natural das coisas: Tomei coragem por essa ocasião e bati palmas no nº 629. Até o anoitecer eu esperei. Esperei até o amanhecer. Bebi uma cerveja. Esperei até na segunda-feira. Até no outro mês. Completei quarenta anos em novembro. Esperei. Meu sobrinho passou no vestibular. Meu pai faleceu num acidente. Minha mãe sofre de Alzheimer. Esperei. Meus vizinhos não são mais os mesmos. Presentearam-me com um livro de fotografias nos meus sessenta anos. Esperei. Acho que estou envelhecendo. Esperei toda uma vida. Espero até o final desta. Todos os dias caminho até lá para observar as novas fracções nos vidros, a cor das portas, o cheiro. Cada segundo escorrido em minhas veias não destituíram aquelas vidas. Há algo para viver ali, eu quero saber. Avise-me, antes que meus netos me surpreendam com a festa dos oitenta e cinco anos. Enxergo menos, ouço menos, cheiro menos, sinto menos. Espero. Agora com meus oitenta e seis anos, eu compreendo com capacidade erudita isto que eu sempre quis. Esperar.
Deixo um retrato para o nº 629.

2 comentários:

Carla Fernanda da Silva disse...

Nossa! Gostei como você 'entrou' na casa, em sua história, em suas ficções. O que mais a casa te disse?

Anônimo disse...

Parabéns Beli
Pelo seu novo e grande trabalho.
A Arte e Cultura agradecem sua participação e empenho.
Adalberto Day cientista social e pesquisador da história.