domingo, 27 de junho de 2010

Para "M"

Se você não se importasse, gostaria de falar das flores.
Só hoje.
Gostaria de falar que as flores são cheirosas, coloridas e macias.
E o sereno?
Já percebeu quando o sereno a deixa úmida? Ela chora. Aquelas lágrimas tão exímias. Distintas de qualquer rosto que já vi chorar. Tenho visto muitos rostos, e poucos são como as flores.
O seu é uma flor imortal, uma flor para mim, concebida por mim. Deveria ser o contrário, não? Eu sei que você não gosta de flores.
Será por isso que não sou mais sua flor? Mas posso ser de um verde escuro, se você quiser. Nego-me a ser espinho. Fui por algum tempo, até que as pontas amarelaram.
Quero ser sua folhagem imortal. Adianto-lhe: Eu não precisarei da sua irrigação, só do seu olhar, o seu apreço. Você adora as folhagens.
E o vento?
Notou que o vento nos une e nos separa?
Quantas flores caídas!
Quantas folhas no chão!
Quantos sim e quantos não, soterrados pelos grãos!
Porque são silêncios seus. Silêncios da criadora, da mestra do jardim, da flor que ainda é corada para mim.
Eu não quero ser espinho, para que você possa me tocar. Mais uma vez, como quando brotei.
Ao me ter em seus braços já enrugados como folhas secas, note sua flor a chorar. Note o sereno, e as folhas do caule.
Virtuosa ao lhe ver, espero o vento... 

quarta-feira, 23 de junho de 2010

Antes que as brasas queimem demais

Então você um dia para tudo que começou e vai.

Segue
Num dia estranho
Da vista dos bicos dos pássaros.
Você para o livro que iniciou
Escrevendo, lendo.
Apregoa o jornal no teto
E corre, corre, corre.
Não olha nem para trás, nem para frente.
Fecha os olhos,
Abre quando chega à escuridão
E vê tudo mais claro
Como as paredes do hospital
De tão claro, adormece e morre.

Morre para viver.

segunda-feira, 21 de junho de 2010

Um dia entre tantos

Era uma quarta-feira nublada e quase fria. Diferente dos outros dias ensolarados em que os pontos de ônibus já deviam estar saturados de ouvir sobre o clima. Juro que esperava por um dia que não só as nuvens fossem exóticas, proporcionando desenhos infinitos. Queria um café sem açúcar para edulcorar a mesmice, amargurando o cotidiano e esmagando as horas com o calor que deslizava em minha língua desembocando em meu estômago. A essas tantas de meus pensamentos, ainda estava forçando a catraca que liberou aquele som peculiar de moedas adentrando em um cofre, mergulhando-se junto de tantas outras, dizendo “Socorro, eu serei comida”. Segurei minha mala preta com meu notebook, arrumei a gravata e verifiquei se o sapato estava sujo. Não, estava exatamente como eu havia deixado, a ponto de espelhar os vidros da janela da locomotiva moderna em que eu embarcara. Olhei para frente e vi uma moça de nariz, olhos e boca pequena. O rosto era pequeno e a pele era branca, como a Santa Maria, Nossa Senhora do Desterro, enfim, aquelas santas. Não consegui parar de olhá-la. Aproveitei porque o olhar dela estava direcionado ao nada para fora daquele ônibus cheio de gente, cheias de pensamentos distintos dos meus e contemplei-a. Vezes as sombras a deixavam escura, vezes os tímidos raios a iluminavam acentuando sua pele. Vezes imaginei-me ao lado dela, vezes imaginei-a de pé ao meu lado esquerdo. Ela era linda. Um forte movimento me puxava para a direita. Fui bruscamente interrompido por um brutamontes que me arrastou com sua mochila. Tive de sair dali. Queria olhar a menina santa. Queria perguntar seu nome, se trabalhava, estudava, lia. Impossível competir com todos aqueles homens e mulheres suados das fábricas, aqueles moleques de faculdade e os aposentados que têm seus lugares preferenciais. Então fui comprimindo-me até ao final daquele automóvel que se enchia de vozes, de roupas coloridas, gente estranha, mas tão semelhantes. Os sons prontos de “desculpa”, “posso passar?”, “que ônibus lotado!”, “Caralho, que demora, já tou quinze minutos atrasado porque essa porra não anda”. Logo desliguei meus ouvidos para esse tipo de conversa e acionei os tímpanos para suavizarem a canção sexual que as portas quando abrem e fecham produzem. Pensei na menina santa, e então a imaginei em minha frente naquele corpo masculino que nos embalos do vai-vem alisavam meu peito, desajustando minha gravata.  Um negro, também de olhos, nariz e rosto pequenos, mas os lábios eram fartos de carne. Era lindo. Uma estátua viva de São Benedito.  Ele estava de frente e com tantos outros corpos tapando as janelas restava a olhar ou para baixo, ou para cima ou para frente. Fitei-o enquanto ele em não sei em que pensamento, olhou para os pés e inclinou um mínimo a cabeça, franziu a testa e mexeu os dedos do pé direito. Ali era somente eu e meu pensamento, que era ele. A menina santa deu lugar ao São Benedito, eu pensei e estiquei a ponta dos lábios para a esquerda, com um suspiro levemente alto, então ele finalmente olhou para frente. E olhou para os meus olhos, passando pelas duas pintas que registram minha bochecha direita, parou no nariz, e logo abaixo mirou minha boca. A boca e os olhos meus, a boca e os olhos dele, num movimento constante, interrompidos por alguns “com licença”, “opa, foi mal!”. Nessa confusão tão previsível de todos aqueles corpos,“Foda-se”, eu pensei , e acho que ele pensou o mesmo. Um beijo suado. Salivas sedentas. Mãos nos cabelos. Mãos nas costas. Mãos nas bundas. Suspiros.  Dois corpos fartos de desejo encarcerado e as mais estranhas vozes de raiva, nojo, euforia que aquela abundância de outros corpos fabricou. Descemos no primeiro ponto com as mãos dadas, procuramos um canto daqueles familiares da rua. Cheiro de homens e mulheres, suor, urina, bebida e cigarro e um pixe do “A” dentro de um círculo. Apenas os carros seguindo o fluxo, escondendo nossos gritos de prazer. Apenas as lojas se abrindo no mesmo horário de todos os dias, dissimulando nossos movimentos. Ali estávamos tresloucados sem mais conter os desejos. Ali se exalou o cheiro de dois homens nus deste cotidiano mesquinho, desta vida besta de convicções imbecis. Vestimo-nos e fomos ao trabalho. 

domingo, 6 de junho de 2010

Inacabado

Quero um tempo
Pra poder falar de mim
Um tempo
Poder falar de mim
Tempo
Falar de mim
De mim
Mim.

Esvaiu no vazio
Crateras sem sol
Nem brilho,
Sem brio.

Mantenho os sons da cidade
Quero um tempo
Os sons da cidade
Um tempo
Os sons
Tempo
Sons.

A pele é gélida,
Gosto groselha.

Esvaneço antes que a doçura
Amargue,
apague, aperte, aparte:
As horas,

¡Ahora!

Que sou eu sem tempo?
Um diabo ao relento?
Um deus desatento?

terça-feira, 1 de junho de 2010